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Neurodiversidade e cura do autismo, analisando contornos naturalizados.

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Ortega em seu artigo O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade nos lança uma pergunta-dispositivo: seria o autismo uma doença ou uma diferença? Segundo o autor, é possível identificar dois movimentos que defendem diferentes respostas para esta pergunta. Esses dois movimentos emergem principalmente do abandono das explicações psicanalíticas para a questão do autismo e conseqüente “desculpabilização” dos pais para com o funcionamento atípico dos filhos 

De um lado temos o movimento intitulado Neurodiversidade, que afirma que o autismo antes de ser uma categoria patológica é apenas uma forma diferente de funcionamento cerebral que deve ser respeitada como se respeitam negros, homessexuais, gays, canhotos. O principal argumento desse movimento é de que “a terapia reprime a forma de expressão natural dos autistas” (Dawson apud Ortega, 2008). Com o objetivo de promover a conscientização acerca da temática, tem-se comemorado desde 2005 o Dia do Orgulho Autista (dia 18 de junho). Segue trecho de um texto que propõe divulgar este dia: 

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      Os defensores do Orgulho Autista acreditam que a noção de pureza racial, em termos de raça humana como um todo, permeia a ciência médica, que parece refletir uma crença de que todo cérebro humano seria idêntico. Os defensores do orgulho autista alegam que a noção de que haveria uma estrutura ideal e, por isso, desejável para o cérebro humano leva muitos praticantes da psiquiatria a assumir que qualquer desvio requer uma “cura” para conformar à norma neurotípica. Acreditam que, no mínimo, deveria haver maior respeito para com os membros da comunidade autista como indivíduos únicos. (Answers, 2009) 

No outro pólo temos os movimentos pró-cura que afirmam o caráter patológico do autismo e conseqüente sofrimento para os que padecem desse mal, assim essas pessoas cobram maior subsídio para terapêuticas que tenham a direção de uma cura do autismo. Essa posição pode ser muito bom exemplificada pelo slogan na página inicial do site autismo infantil1O Autismo é tratável. 

No cerne dessas movimentações temos a internet como principal canal de interligação e troca de informações. Há uma infinidade de sites, comunidades, fóruns destinados a “celebrar uma certa cultura autista”. No front desses movimentos de Neurodiversidade temos principalmente os ditos autistas de alto funcionamento, ou portadores da síndrome Asperger como comumente são diagnosticados. Esse é um tipo de autismo que não causa déficits físicos e sociais severos. 

Nos últimos anos pudemos observar uma intensificação do debate político entre ativistas do movimento de Neurodiversidade e organizações de pais e mães de autistas pró-cura. As organizações pró-curas geralmente acusam os ativistas autistas de culpabilizarem pais e mães de autistas, uma vez que esses são denominados como obcecados por cura. 

Essa culpabilização não vem de uma explicação psicodinâmica, mas principalmente do fato de a retórica da neurodiversidade geralmente culpar os pais por uma intolerância como o modo de ser de seus filhos.  

Uma coisa que não podemos deixar de levar em conta é que o movimento de Neurodiversidade é formado basicamente por ativistas com síndrome de asperger (forma consideravelmente mais branda de autismo) que tem capacidade de se expressar e constituir relações sociais minimamente funcionais. A partir do momentoem que eles se consideram no direito de falar em nome de todos autistas, estão falando em nome de pessoas que nem falam. Portanto, temos o movimento de despatologização do autismo padecendo de certa política de identidade homogeneizante capaz de ser observada em diversos movimentos de minoria, como foi o caso do movimento feminista radical por exemplo. 

Do lado dos movimentos Pró-cura vemos que essa busca desenfreada pela normalização de seus filhos autistas é um motor para justificar muitas práticas anti-éticas e agressivas. Inevitavelmente somos levados a pensar em certas políticas eugênicas genocidas que podem surgir no bojo desse discurso obcecado pela normalidade. Uma normalidade baseada principalmente na idéia da ausência de doença e num funcionamento ideal. Basta que tenhamos certos “renomados institutos” de pesquisa dizendo que mapearam o genoma e conseguiram reconhecer o gene autista para que surjam grandes programas de “abortos autistas”, ou de restrição de “reprodução do gene autista”. 

Devemos falar nesse momento do caminho que nossa sociedade trilhou em direção a uma certa biosociabilidade. Cada vez mais, imagens cerebrais e categorias nosológicas baseadas numa etiologia fisiológica constituíram o grande arcabouço gerador de sentido social. Sob uma certa crença de que esse conhecimento era o mais objetivo e observável e, logo, o mais “certo”para falar sob o funcionamento das pessoas, temos (no âmbito das ciências do comportamento principalmente) a redução do sujeito ao cérebro consituindo assim o que Ortega chamou de Sujeito Cerebral. 

Esta afirmação nos leva a uma reflexão acerca do contexto da cultura somática – e, mais especificamente, uma neurocultura – que temos vivido. Este cerebralismo defendido por ambos os grupos constitui uma marca identitária corporal que claramente se opõe às infinitas possibilidades de subjetivação ‘mental’ (segundo idéia defendida por Ortega). Assim, o autor afirma: 

Ao apostar no pólo cerebral para defender a diversidade de formas de vida, não estaria o movimento da neurodiversidade se afastando da riqueza do mundo mental, no qual o que aproxima e distancia os indivíduos são as visões de mundo, os ideais e as esperanças, compartilhadas ou não? Não estariam apostando em uma diversidade que no fundo é uma forma de homogeneidade, situando a própria diferença em uma identidade naturalizada, marcada no cérebro e, como conseqüência, de uma política da identidade? (ORTEGA, 2008 p.496) 

Ortega (2008b) nos diz ainda que a cultura somática “produz indivíduos desconfiados e melindrosos, inseguros de si e insensíveis ao outro e ao mundo. Sem a confiança em si mesmo e nos outros não pode haver ação, somente indivíduos reativos, adaptados, obedientes e submissos” (p.49). 

Nesse processo, duas experiências absurdamente diferentes são geralmente julgadas iguais por conta de criarem a mesma imagem cerebral. Mas isso quer dizer o fim da subjetivação? Nem de longe. 

O que há  são processos de subjetivação desse discurso, no qual assumimos da mesma forma subjetiva, dados que se dizem concretos, mas ao fazermos negligenciamos a diversidade contida na esfera mental/social a favor de um fisiologismo que, no fim das contas, é tão clínico quanto qualquer observação psicanalítica. 

Retornando a questão do autismo, estamos falando (inclusive no discurso médico vigente) de um espectro, o que faz com a discussão necessariamente seja bem mais complexa do que presumem tanto os ativistas da Neurodiversidade quanto os Pró-cura. 

Os dois movimentos lançam mão de discursos “neuro” para justificar suas posições – no caso dos ativistas muitas vezes o diagnóstico ganha ares de uma auto-afirmação, como se a partir do diagnóstico aquele funcionamento diferente ganha um status socialmente aceito. Nesse processo temos o que Ortega chamou de Neuro-identidades, que é o ponto final da difusão de “visões reducionistas e objetivadas da pessoa humana” (ORTEGA 2008). Já os movimentos Pró-cura usam essa mesma visão, mas vêem em seus filhos autistas um transtorno, um problema e que todos os esforços devem ser na direção da cura, mesmo que por muitas vezes essa cura seja na verdade um discurso mascarado para um treinamento baseado em condutas agressivas e punitivas. 

Assim, podemos observar de um lado o risco do Movimento de Neurodiversidade caia numa política identitária homogeneizante e pouquíssimo plural, em que uns poucos autistas de “alto funcionamento” se outorguem o direito de falar em nome de todos, deixando de lado de forma hipócrita o abismo que os separam de autistas que tem severos atrasos físicos e mentais. Isso enredaria uma história bem comum a outros movimentos de minorias – constituição de um movimento infantilizado, com um eterna auto-vitimização e sem reflecão crítica, como nos diz Ortega. 

Mas também justifica a preocupação desses ativistas que o discurso pró-cura esteja na base de possíveis políticas agressivas de abortos e testes genéticos, bem como uma estigmatização de um funcionamento mental atípico sob uma categoria diagnóstica fechada que carece de ser ostensivamente combatida. 

O que vemos é que o debate do movimento da neurodiversidade no viés político pode ser analisado a partir do argumento do significante “diverso”. O uso desse adjetivo primeiramente pode remeter a uma comparação do que é individual – o cérebro – com o coletivo – os cérebros das sociedades. Mas a partir da definição dada pelos neurodiversos, entendemos que se propõe o fim do espectro do diagnóstico do autismo, que representa os diversos níveis de desempenho social, intelectual, etc. Podemos então, com esse conceito, pensar que a neurodiversidade apresenta-se enquanto diversa dentro do autismo – ou seja, dentro da bioidentidade autista, que tem a legitimidade de ser diversa – mas ao analisar-se perante ao restante da sociedade dita  neurotípica, não formam um conjunto de “cérebros neurodiversos”, que abarcariam toda a variabilidade neurobiológica humana. Trabalhando no viés de tipicidade versus atipicidade afirma um separatismo que cria nichos, guetos, grupelhos, associações que não compartilham de uma ideia de coletivo afirmativo de diversidade. “A subjetivação de agrupamentos empobrece a experiência humana”, fala do Francisco Ortega. 

Há ainda um questionamento bastante pertinente e inquietante em relação ao que chamamos de separatismo do movimento neurodiverso. Eles se afirmam também como uma voz do autismo enquanto identidade no discurso, na lógica de falar pelos autistas.   

    “(…) trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. […] nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; […] as coerções do discurso: as que limitam seus poderes, as que dominam suas aparições aleatórias, as que selecionam os sujeitos que falam.” (Foucault, 1970). 

O que vemos é que o funcionamento mental do ser humano é algo extremamente plural e diverso, mas não por uma diferenciação apenas das conexões sinápticas. Essa diversidade está longe de ser mapeada por imagens cerebrais, pois nesse âmbito toda a pluralidade das relações humanas é reduzida a áreas que são ativadas ou não do cérebro. Mesmo que haja muita positividade nos dois discursos em torno do autismo, devido ao fato de partirem da mesma premissa, em último caso, eles afirmam práticas reducionistas do funcionamento humano. Um exemplo dessa diversidade pode ser notado no exemplo do “menino sonar”  (http://www.youtube.com/watch?v=HhkTQ8qETK8) – uma criança que não enxerga desenvolveu uma capacidade de emitir pequenos estalos com a boca e mapear o ambiente a sua volta. Essa capacidade, que nos golfinhos e morcegos era identificada com estruturas orgânicas específicas, surge em um ser humano, que teoricamente não dispunha dos mecanismos para tal proeza. Cabe nos perguntarmos se a partir disso partiríamos para uma busca desenfreada por criar contornos em imagens cerebrais que justifiquem a existência de uma estrutura específica para esse fato, ou vislumbraremos na plasticidade do cérebro uma porta aberta para expandirmos nossas análises para visões além da fisiologia? 
 

Referências 

Answers http://www.answers.com/topic/autistic-pride-day (acessado em 11 de novembro de 2009). 

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.

ORTEGA, Francisco. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana,vol.14, n.2, 2008a. 

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto. Corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008b. 

http://www.autismoinfantil.com.br/estudo-sobre-autismo.html (acessado em 12/11/2009) 

http://www.youtube.com/watch?v=HhkTQ8qETK8 (acessado em 12/11/2009)

Por Getúlio Sérgio Souza Pinto, Laura Paste e Paula Maria Rangel

O sujeito cerebral.

sujeito cerebralChamamos de “sujeito cerebral” a figura antropológica que incorpora a crença de que os seres humanos são essencialmente reduzíveis aos seus cérebros. Há, portanto, nessa neuro-visão de mundo uma tentativa de definir identidades e diversidades humanas a partir da decodificação das funções cerebrais. O avanço das tecnologias na área da neurociência é apenas uma das variáveis que contribuíram para o fortalecimento dessa visão do sujeito que não é nova, mas que atualmente ganhou status de verdade em algumas culturas do mundo. Contudo, o sujeito cerebral é uma construção coletiva definida no pacto social dependendo dessas diferenças culturais, econômicas, políticas, afetivas que configuram o cenário cultural de cada lugar. Com isso, a antropologia nos ajuda a entender que esta visão biomédica atual, que se pretende universal, não é comprada por todos da forma que ela é vendida e massificada pela indústria farmacêutica. Fazendo esta reflexão antropológica conseguimos escapar do fatalismo e da busca de um culpado para a produção do sujeito cerebral e nos inserimos num processo de responsabilização em que analisamos essa transformação num contexto mais amplo. São inúmeros pontos que convergem nessa perspectiva biologizante como “o fortalecimento do cientificismo (crença ideológica na superioridade do discurso cientifico sobre os demais), o apagamento da política e das praticas sociais que consideravam sujeito como autor de sua existência individual e coletiva, a emergência de uma cultura da objetividade que valoriza a imagem em detrimento da palavra e da interpretação, o deslocamento das regras de socialização fundadas na interioridade sentimental em direção a uma cultura da subjetividade somática, a explosão da tecnociência, das biotecnologias e do consumo intensivo de produtos e serviços voltados para a otimização do desempenho biológico como correlato das práticas de si, e assim por diante.” (ORTEGA, BEZERRA, JUL/2006).

Uma discussão interessante levantada pelo filósofo Francisco Ortega e pelo antropólogo Rogério Lopes Azize é como e porque a figura antropológica do sujeito cerebral está se difundindo no público leigo? Porque esse processo é dado como óbvio? Porque é um discurso tão sedutor?

Essa figura antropológica surge desde século XIX e ganha força no final do século XX, acompanhando o avanço das neurociências e das tecnologias de visualização do cérebro, que foi essencial para que o cérebro deixasse de ser invisível ausente e inapreensível e se tornasse acessível para o público leigo dando uma ilusão de verdade objetiva e indiscutível que mascara a possibilidade de manipulação dessas imagens cerebrais.  

manu e bruna II

“Susan Aldworth a partir de sua experiência com a medicalização de seu próprio corpo, apropria-se de imagens do cérebro, desenvolvendo seu trabalho através de residências artísticas em hospitais na Inglaterra. O  trabalho da artista plástica britânica com  imagens do cérebro representa um engajamento com questões fundamentais de nosso regimem biopolítico contemporâneo. As suas obras questionam a promessa de transparência e acesso visual imediato ao cérebro, tentando dar uma resposta à pesquisa dos neurocientistas e psicólogos cognitivos que usam neuroimagem para explorar a relação entre estruturas físicas e funções mentais, as implicações éticas de localizar a identidade no cérebro, entre outros. Aldworth problematiza o que a cultura popular assume como premissa quando fala do cérebro, isto é, a localização da identidade pessoal no cérebro, o sujeito cerebral. Obras como “Cogito ergo sum” nos obrigam a refletir acerca do que estamos vendo quando olhamos para uma imagem do cérebro. Num texto incluído dentro de um de seus trabalhos podemos ler “Você pode olhar no meu cérebro mas nunca me encontrará” e em outro aparece, ‘Estou tanto dentro de minha cabeça como fora do meu cérebro’.” (ORTEGA, 2008) 

Outro agente importante na popularização desse fisicalismo da subjetividade dos sujeitos é a massificação desses discursos através da mídia que vende essa neuro-visão de mundo e ajudando a configurar novas identidades e práticas individuais a partir dessas novas verdades, que não são boas nem ruins em si mesmo, mas que trazem no “entre” desses discursos questões que precisam ser problematizadas, como os valores embutidos nesses jogo de forças que conduzem a um certo modo de pensar a vida e a qualidade dessa vida. Entendendo a produção desse sujeito cerebral como coletiva, não podemos demonizar e culpabilizar um ator social desse processo, mas pensar que esse discurso se torna tão sedutor porque serve de “consolo para aqueles que têm “dificuldade de encarar o mundo de decisão e ação que se edificou sobre as ruínas da sociedade da disciplina.” Fugindo da culpabilização vamos em direção a responsabilização, compreendendo que diversas variáveis interferem na produção do que se é (mundo compartilhado).

 A partir das discussões sobre essa temática, tanto na literatura quanto no debate em sala de aula, é possível refletir sobre inúmeros impactos que tal leitura contemporânea do que é ser humano tem produzido socialmente. Entretanto um aspecto importante para nós suscitada a partir dos pensamentos e indagações em torno do “sujeito cerebral”, foi a importância e a necessidade que vemos, principalmente no exercício como profissionais psi, de estarmos constantemente desnaturalizando discursos e práticas que são propostas como dogmas totalizantes e reducionistas. O cuidado deve ser sempre na direção de não psicologizarmos o sujeito, eliminando qualquer abertura há outros saberes e modos de vida, e nem biologizarmos o mesmo, tomando o todo (homem como uma rede complexa de atravessamentos) por uma única parte (atualmente, o cérebro). 

“Essa negação do outro, da vida social, do mundo compartilhado, é uma grande perda ética nesse tipo de visão da identidade.” Francisco Ortega

Sugestões de leitura:

Imagens médicas entre a arte e a ciência: Relações e trocas. Rosana Horio Monteiro. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/cep/rosana_monteiro.htm.

– Café Filosófico com Francisco Ortega. O sujeito cerebral: identidades, neurociências.

– Vídeo: http://www.pepas.org/multimidia/multimidia_videos_aldworth.html

Texto por BRUNA COSME BONGIOVANI & MANUELLE TOSCANO RIBEIRO